Entrei no táxi e disse: “Casa do Porco, por favor. Sabe onde é?” O motorista respondeu: “Sim, levo muita gente lá”.Esse diálogo poderia ser em Lima, no Peru, se eu perguntasse se ele conhecia ceviche e Gaston Acúrio. Lá todo mundo conhece o prato de peixe cru marinado e o chef.

Aqui, o casal Rueda trabalha para divulgar as nossas raízes caipiras e igualmente fazem fama. Além do porco, agora também aparecem legumes e verduras como estrelas do “banquete gastronômico”, contemporâneo de raiz, arrisco dizer, que servem na premiada Casa do Porco, em São Paulo. Fui conhecer o menu “Da Roça para o Centro” que festeja os seis anos do restaurante.

Cheguei pontualmente no horário de abertura: 12h. Aos poucos o movimento aumentou. Ainda tem gente em frente a porta d’A Casa do Porco, alguns desavisados chegam sem reserva, se olham desanimados e pensam se vão aguentar algumas horas de espera.

Não estão entre as 17 mil pessoas por mês que fazem uma refeição ali, seja no restaurante ou no balcão aberto para a rua, que vende sanduíches.

Sim, é possível reservar, isso acontece desde outubro de 2021 quando o restaurante foi reaberto depois de fechado durante a pandemia. A espera é de mais ou menos três meses e vale a paciência.

“É um outro momento, não queremos aquela aglomeração como existia antes”, diz Janaína Rueda, que desfila tranquila entre cozinha e salão.

Meu almoço era na cobiçada mesa do chef dentro da cozinha. Em poucos minutos o restaurante estava lotado, apenas as mesas de fora arranjadas dentro do movimento “ocupa a rua”, estavam vazias, aquelas embaixo da marquise tinham poucos clientes.

A chuva forte intercalada com garoa fina não ajudava. Ocupar o centro é outra proposta dos Rueda’s — e eles foram inovadores.

Pandemia

O casal acumula prêmios na bagagem e viagens internacionais para recebê-los, mas a vida dá lambadas em todo mundo. Felizmente, eles sabem como enfrentá-las, “com coragem, trabalho e sem esconder nada”, conta Janaína.

Na pandemia Jefferson Rueda foi surpreendido com uma crise de burnout e depressão. Um pouco nervoso, vi o chef contar para a plateia do Mesa Tendências, o evento da revista Prazeres da Mesa, e repetir em várias entrevistas os detalhes de como a doença o atingiu, como lutou e ainda luta para enfrentá-la.

“Foi um ano difícil”, desabafou Janaína, sem demonstrar desânimo.

Sua força impressiona. Ela está mais presente no restaurante do marido, além de também tocar o Bar da Dona Onça, no edifício Copam, ali pertinho.

No tempo em que estive no restaurante, ela supervisionou a cozinha e o salão. Janaína também assina o cardápio ao lado do Jeffinho e equipe, e o menu de coquetéis alcoólicos e não alcoólicos, com Marcos Pardim.

É deles ainda o Hot Pork, com salsichas de carne suína sem aditivos; a Sorveteria do Centro, que não utiliza corantes ou aromatizantes artificiais nas suas receitas; e um laboratório de estudo para testes de receitas.

Sonho adiado

A depressão do Jeffinho, como é conhecido o chef, adiantou o sonho de ter um sítio. Com o restaurante fechado e depois de arrumar todos os armários de casa, aflorou seu perfil hiperativo. Sem saber o que fazer, foi pescar em São José do Rio Pardo, sua cidade natal e não saiu mais do mato.

Janaína sabia que o sítio iria ajudá-lo. Agora além da procedência dos porcos criados soltos, com alimentação especial, que eles acompanham, os vegetais e legumes servidos na Casa do Porco também vêm do sítio da família.

“O que ajuda a planejar os menus servidos durante o ano”, explicam. São dois: primavera/verão e outono/inverno”.

É tudo 100% orgânico e sustentável, feito em parceria local com outros produtores para poder dar conta da ideia, alardeiam. Passo firme na defesa da chamada economia regenerativa que eles já praticavam.

Se a pandemia teve um lado bom foi a “possibilidade de refletir sobre o nosso trabalho”, diz Janaína. O sítio também deve virar escola e recebe os funcionários que conhecem como tudo é feito.

Menu sustentável

Depois dos aperitivos já conhecidos e festejados, mortadela e o presunto “royal dos Rueda’s”, entre outras iguarias, o cardápio começa dividido em cinco seções: criar, plantar, colher, cozinhar e adoçar.

A ideia dos snacks pra comer com as mãos funciona, lambe-se os dedos pra prolongar os sabores. É o começo: “criar; fazer existir; dar origem, a partir do nada”.

Pequenos bocados que comemos rapidamente, até sem identificar tudo. Tem ora-pro-nobis com lardo, cítricos e favo de mel; telha de milho criolo com flor de copa lombo curado e bottarga de gema caipira; embutido de cabeça de porco com limão, mexerica e flores. Abre o apetite.

Seguem três verbos: “plantar: semear e afagar a terra”.

Peixe agulhão vai com urtiga, maionese de bacon e raspa de limão; a textura mexe com a memória que tenta decifrar todos os sabores sem conseguir.

Aparecem alguns clássicos: temaki de tartar de porco, servido com nori, abacate e ervas frescas; o conhecido sushi de papada com tucupi negro, que talvez por não ser novidade não emocionou, e a pancetta com goiabada — esse é celebridade como falam, os dois estão no cardápio desde 2015. Eles não se atrevem a tirar e tem razão em não fazê-lo. Sigo a ordem sugerida para comer.

Perfeita sincronia

A cozinha tem um batalhão de 83 pessoas. Na parte aberta para o salão com a mesa do chef, acho que pelo menos uns 20 fazem um balé de entra e sai discreto, serviço também com pouco stress, pelo menos ali onde todos são vistos. A chamada boqueta, a abertura entre a cozinha e o salão pela qual saem os pratos para os garçons servirem, é ao lado de onde estou.

Foi no “colher os presentes da terra” com a beterraba fazendo par com o codeguim, um embutido preparado com especiarias, acompanhada de um sorbet para refrescar e limpar o paladar, que a força discreta que vem do sítio deu mostras. O campo e a natureza dão os acordes e selam o capricho com que tudo é feito.

O peixe de rio chamado “porquinho” é uma brincadeira. E tem mais peixe nesse cardápio, afinal é verão. Acompanha maionese de pé de porco, com ovas de truta, alga e o tomate enorme frito na banha de porco, apesar disso, tudo muito delicado.

Mas o “presente da terra” é mesmo o consomé de legumes tostados e soja fermentada que enriquece a massa delicada chamada de “umbigo” de porco, um tipo de cappelletti, acompanhado de quiabo, com suas folhas e gotas de pimenta de urucum. Ainda bem que se recomenda tomar o caldo direto da tigela, ia chorar se não pudesse.

Perfeito, o prato marca a experiência. Penso nele até hoje.

Da horta ao prato

E vamos chegando ao fim da refeição equilibrada com “cozinhar: transformar o alimento através de um ato de amor”. E vem ele soberano, o San Zé, o porco caipira assado quase oito horas. Acompanhou melancia, flores, linguicinha caipira com nabo e rabanete, salada de mamão verde, bolinho de morcilla, farofa de cebola, tartar de banana.

Tudo “o que veio da horta” na semana servido em pratinhos separados. A novidade é que tem tucupi no caldo do porco e é uma excelente novidade, é puro umami – o quinto sabor.

“Ser feliz” é o código para as sobremesas e mostra que é impossível não ser: frutas cítricas da horta, sorbet e ervas, que deve evoluir ainda, e depois as várias versões da pamonha do “jeito deles”. São coassinadas pela chef-pâtissière Priscilla Mei, que passou um período no sítio guiada pelo chef.

Château de Yquem

A carta de coquetéis é uma outra viagem, adoçados com os meles do sítio e muitos sabores para explorar inúmeras possibilidades. Destaque para o “Centro de SP”, com whiskey Bourbon, xarope de mel, Jerez Oloroso e cítricos, meu preferido — não sou de drinks, aviso.

Os outros iam numa régua eclética, desde espumante, com calda de jabuticaba e o vinagre da mesma fruta, que eu comprei quando foi lançado, chamado de o “produtor rural”; a pisco “Dolores Danada”, com vermute; até o “pinga ni mim”; e os licores, “bem bão”, digo na tentativa de imitar o caipira.

O que foi difícil de acreditar é que entraria em cena o vinho Sauternes do Château d’Yquem. Sim, ele mesmo em uma perfeita harmonização.

O casal Rueda é embaixador da icônica marca e, se existe alguma coisa que combine mais com esse porco, digo sem pensar muito, além de um foie gras, desconheço.

Foi um almoço rápido porque eu tinha hora marcada pra voltar e menu como este é pra ser degustado, entendido, contemplado, como sugerem. Refeição assim deve ser sem pressa. Meio milagre se pensarmos em todas as etapas até a comida chegar ao prato.

Fiquei matutando desde quando o cardápio dali muda assim, esqueci de perguntar, e se isso é mesmo preciso. Quer dizer que quanto eu voltar no inverno, não terei o “umbigo de porco”? Talvez, com sorte, ele vire um clássico, vou rezar.

Será que inovar o tempo todo é o caminho? Bem, isso testa os chefs e é bom. Ali, o rigor na execução dos pratos continua na melhor combinação de sensibilidade com criatividade.

Quero provar as versões com cogumelo e queijo coalho no menu vegetariano, que deve entrar em breve, mas alguns pratos já são servidos para quem preferir essa opção.

Jefferson e Janaína Rueda comemoraram os prêmios, como o de melhor restaurante do Brasil, na 17a colocação na lista do The World’s 50 Best Restaurants.

Serviço:

A Casa do Porco – Rua Araújo 124, República – São Paulo. (11) 3258-2578.
Horários de funcionamento: de segunda a sábado, das 12h às 23h; domingo, das 12h às 17h.
Reservas www.thefork.com.br e www.acasadoporco.com.br.
Mais informações: @acasadoporcobar.