Duro é esperar pelo dia seguinte, o bolo precisa descansar. Feito a vida: paciência sempre.
Requento o texto publicado em 2014 (a revista Ideias, do Fábio Campana, infelizmente, não existe mais). Preparei apenas uma vez na vida, o bolo tem sabor de sentimentos misturados. Para cumprir o que me cabe, já explico, desta vez assumi o papel de fotógrafa e relatora. A receita era para comemorar as festas natalinas e de fim do ano e a das luzes do calendário judaico, não deu, agora, vem para começar o ano.
Os responsáveis pelos detalhes da história merecem crédito: a neta da matriarca e um primo, que, certa feita, vendo a foto do “bolo das famílias” no Facebook, cutucou-me. Eu peguei a isca no intuito de publicar a origem da tradicional sobremesa e finalmente me atrever ao adiado teste de fazê-la. Sou chegada a uma história de comidas e doces que terminam em “viveram felizes para sempre”.
Conta ele que a receita é secular, foi trazida ao Brasil pela família Boutin e transmitida aos descendentes dos Heisler a partir do casamento de Bertha Boutin com Alfredo Heisler em 1882. “A receita original deve ter sido criada em Overdorf, morgado de propriedade dos Boutin nos arredores de Hamburgo, talvez até adaptada de tortas do sul da França, pois a família era originária da região do Languedoc, de onde emigrou para a Alemanha por motivos de perseguição religiosa aos huguenotes”. Os huguenotes eram os franceses protestantes, a maioria calvinistas. E, assim, tradições culinárias iam juntas e transferidas para outros países.
Imaginando a saga da família e querendo saber mais, perguntei como ele descobriu a história. Curioso, disse que achou alguns livros escritos pelo bisavô Heisler, que foi deputado, capitão da guarda nacional, joalheiro, historiador nas horas vagas e genealogista de mão cheia. As primas, Mary, mãe do narrador da história do bolo, e Marian, minha sogra, aprenderam com as avós que eram irmãs, Clara Heisler Berndt e Anna Heisler Quentel. “Todas as mulheres Heisler/Boutin fazem a receita até hoje, menos minhas irmãs”, reclamou ele; da parte de Marian a história também quase se repete, não fosse uma neta. Escrevi que assumiria o compromisso e não cumpri a promessa.
Agora ganhei outra chance. A neta responsável em perpetuar a receita veio de longe nos ensinar. “O certo é que a receita foi trazida pelos Boutin ao Brasil, mais precisamente para Joinville, onde os primeiros imigrantes da família se instalaram por volta de 1862”, afirmou o primo, com a intenção de a receita não cair no limbo. Destaco que originalmente o bolo era feito com chocolate picado, depois substituído pelo chocolate em pó (o da caixinha, conhecido como “chocolate dos padres”) e, nos anos 60, infelizmente pelo Nescau. Troca não recomendada, minha preferência sempre é aos sabores mais puros.
Receita de família
Parece que a dificuldade de se fazer várias camadas da massa de chocolate (quatro), que exige pesar, assar, cortar e rechear têm afugentado as novas gerações da responsabilidade de dar continuidade à uma tradição familiar. O bolo é coberto por uma camada de merengue, com suspiros provocativos e estrategicamente colocados. Conheço desde que comecei a frequentar os aniversários da família, em uma época de brincar com bonecas. Quando oficializei a entrada no clã, a coisa ficou mais séria. Já carregando o sobrenome, experimentar o doce passou a acontecer com mais frequência, todos os filhos e netos ganhavam nos aniversários, sorte das visitas e familiares. É disputado, até motivo de brigas, porque todos querem o miolo.
Até hoje, alguma coisa inexplicável no meio do caminho afastou-me da intenção de prepará-lo, talvez contaminada pela preguiça de enfrentar alguns desafios culinários, também, pela sombra da sogra, que o fazia com perfeição. Eu sempre perdia a receita, desaparecia quando pensava em enfrentá-la. Eis que ela surge para atender um pedido.
Termino o texto desejando que 2025 venha doce na medida certa, como o nosso bolo. Gosto de lembrar de que na vida as melhores coisas que alcançamos vêm depois de algum (ou muito) esforço. Uma das dificuldades está em assar as quatro camadas da massa, que são finas e ameaçam quebrar a todo instante e resistir à tentação de comer no mesmo dia, é preciso paciência, o bolo exige virar uma noite de descanso. Tendo os apetrechos certos é fácil: balança; espátulas (grande e pequena); quatro formas iguais e um forno no qual caibam todos os discos de uma vez; em duas horas mais ou menos e o bolo estará pronto.
Uma música: Coffee Cold, com Galt MacDermot (dica que tirei do Jornal Plural). Embala um convite a se despir de tudo. Faça um striptease consciente. Escute, dance e me conte. Prontos para 2025?