Não esperava nada do Harry’s. Arriscamos ir mesmo sem reserva. O maître disse para esperar no bar e o barman sorriu. Essa cena deveria acontecer com frequência. Uma hora ali passou muito rápido. Depois a Helena cuidou de tudo. Sem expectativas e com bom atendimento, o restaurante, em Veneza, entra na lista de preferidos.

Pela primeira vez em anos começava uma viagem sem pesquisa gastronômica. Reflexo da pandemia recente. Quase nervosa, seria uma prova resistir sem as minhas listas com indicações. Seguiria depois para a Toscana, Ligúria e Lombardia e teria a companhia e dicas de locais. Veneza foi escolhida por conta da Bienal. Fora trabalhos incríveis que justificam a viagem, o perfume da flor “dama da noite” pelos jardins de uma das sedes da exposição tem efeito de um bálsamo que alivia as dores do nosso tempo. Imagino voltar.

História

O Harry’s tem história, é do grupo Cipriani, “dispensa comentários”, como dizem. Vou comentar mesmo assim. E se for para dispensar alguma coisa que seja só o carpaccio, que dá fama à casa. É de uma simplicidade de envergonhar, carne crua e um zig zag de creme branco serpenteando por cima, só isso. Conta a lenda que foi inventado para o escritor Ernest Hemingway que bebia muito e quase não comia. É lenda mesmo. A verdade é que o pintor renascentista Vittore Carpaccio estava com a condessa Amalia Nani Mocenigo, cliente do Harry’s, que tinha a recomendação do médico de uma dieta sem ingerir carne cozida por um tempo. O dono do restaurante, Giuseppe Cipriani, aceitou como um desafio, pediu 15 minutos, serviu-lhe um Bellini e entrou na cozinha, logo depois apresentava para ela o “Carpaccio alla Cipriani”, com as finas fatias de filet mignon cruas e um molho branco por cima. A inspiração vinha das pinturas em vermelho e branco de Carpaccio. Não é novidade que para criar é necessário conhecer outras artes, ler, ir a museus e teatros. Outro pintor, Giovani Bellini, que gostava de pêssegos, inspirou o drink. Um impacto em pleno 1948.

A clientela do Harry’s também ajudou a dar prestígio ao local. Hemingway tinha a companhia de Katherine Hepburn, Gary Cooper, Peggy Guggenheim, Orson Welles, Frank Lloyd Wright, Truman Capote, outros assíduos frequentadores. Fiquei imaginando essa turma comendo e bebendo ali e só isso já me fez gostar da casa.

Ainda no bar, enchi a boca com azeitonas carnudas entre mordidas no “palancão” – apelido familiar para o sanduíche com pão de forma cortado em quadradinhos, fatias de ovo cozido, maionese e aliche servido para distrair – foi a senha  para o que seria comprovado depois, eles levam a sério o bom atendimento.

A jarra de Murano melhorou o prosecco, desconfiei, desceu como água, mas não saía dali sem pedir um Bellini. O drink com suco de pêssego e a clássica bebida italiana do Vêneto, equivalente ao nosso espumante, também foi inventado na casa. Grande sacada pois o aroma do vinho é o da fruta. Aprendo que o Prosecco pode variar seu grau de perlage, as bolhas, podendo ser apresentado sem elas, daí chamado de vinho “tranquilo”. Começou a ser produzido entre os séculos 18 e 19 com a uva de mesmo nome, hoje conhecida como glera. Apesar de ser um produto de origem controlada, a grande produção deixou-o popular, mas a bebida perdeu qualidade e teve a reputação  abalada. É uma alternativa barata ao champanhe e o do Harry’s é bom.

Mais história

Envergonhada, preciso admitir que desconhecia a história do Harry’s. Giuseppe Cipriani Senior abriu o bar em 1931 com o lema “serviço, liberdade e nenhuma imposição”, anote, a fórmula funciona. Cipriani era barman em um hotel e um dos seus clientes mais assíduos passava uma temporada na cidade com uma tia. Não é muito sabido o que aconteceu entre eles, apenas que seu cliente, Harry Pickering, de uma família rica de Boston, ficou completamente sem dinheiro, nem para pagar a conta do hotel, nem voltar para casa. Foi socorrido por Cipriani que lhe emprestou 10 mil liras. Alguns anos depois, Harry devolveu o dinheiro recompensando-o com mais 30 mil liras. Com a pequena fortuna em mãos, ele decidiu abrir o bar e realizar seu sonho. O sucesso dura até hoje. Uma simplicidade requintada define bem a casa. Em 2001, o restaurante foi declarado uma “marca nacional”. O único lugar a receber a honraria pelo Ministério da Cultura italiano.

Não tenho notícia de como do pequeno restaurante em Veneza foi criada uma rede, com casas, incluindo hotéis, que estão desde Las Vegas, Abu Dhabi, Moscou e Nova Yorque, claro, além de outras cidades. Vários produtos, como massas caseiras e bebidas, também são vendidos no Harry´s. No Rio de Janeiro, empresta o nome ao restaurante do Copacabana Palace, que não faz parte da rede.

Cardápio

O cardápio é recheado de clássicos que deixam zonzos os famintos e pratos tradicionais da cozinha do Vêneto. Escolhi o prato do dia, risoto com camarão, confesso, o melhor da vida. Igualmente a massa fina delicada, com manteiga e salsinha. Além do Bellini, do carpaccio, claro que você precisa provar e dar a sua opinião, não deixe de pedir o merengue, com pão-de-ló. Se for dividir a sobremesa, o que não recomendo, seja rápido com a colher. O “bolo da casa” é inesquecível. Neste exato momento em que escrevo vem o desejo de ser a “Jeannie, um gênio”, do seriado do século passado, criado pelo escritor Sidney Sheldon, que preenchia tardes sonolentas da juventude dos anos 1970. Era um torcer de nariz dela e sonhos impossíveis se materializavam. Em segundos estaria no Harry’s. Aproveite, a bienal vai até 27 de novembro.

Rua Vallaresso, 1323
Veneza – Itália
www.cipriani.com