O futuro pode estar no passado

 Algum tempo depois, provoco a memória e lembro da viagem que foi de enfrentar medos. Não por acaso revirei traumas. Vai entender. A emoção permanece na pele e é só fechar os olhos para sentir. Passei uma noite num cantinho na praia do Bonete, Ilhabela, no litoral de São Paulo. Distante da costa e sem energia elétrica, como se tivesse um tempo para respirar sem pressa, escutar histórias e comer peixe pescado na hora. Nem quis saber como chegaria até aquele lugar isolado para não desistir antes. Fui. Conhecer o projeto A.MAR estava nos meus planos.

Foram quase duas longas horas em um bote de borracha para chegar lá, por sorte evitei a canoa. Eram ondas enormes para mim, pequenas para o barqueiro acostumado a navegar desde menino. Costa se afastando até desaparecer, mar lambendo o céu escuro prevendo temporal no horizonte. A minha viagem começou assim, a de jovens surfistas começou muito antes. Pelo menos há 30 anos quando a ideia deles era apenas pegar onda e pescar. Com 14 anos, Rodolfo Vilar já tinha seu barquinho e junto com o amigo Adriano Pelegrino, o Perna, descobriram o Bonete.

O lugar intocável, uma vila de pescadores, foi a isca. O cenário de filme atraiu os surfistas, que começaram a frequentar a praia. Década de 1980, eles, raros personagens a entrarem ali, testemunhas da decadência da pesca artesanal, vendo os filhos de pescadores não darem continuidade ao trabalho dos pais e o turismo substituindo um modo de viver. Desconfio que não imaginavam que o envolvimento com a comunidade do local mudaria suas vidas.

Projeto

Ao saber que uma tradição estava se perdendo, além da impossibilidade de armazenagem dos pescados sem luz elétrica e a comunidade ter sua renda diminuída, os três amigos, faltou citar Ciro dos Reis, que também está junto desde o início, decidiram criar o projeto A.MAR. Era o ano de 2016, quando começavam a instalar os primeiros painéis solares na ilha, mas que não resolviam totalmente a demanda dos pescadores. “Queríamos resgatar o orgulho caiçara”, contam em uníssono. Outro ponto importante é a demarcação do território pesqueiro porque a partir do fim da pesca artesanal foram chegando os barcos de pesca comerciais. “Chegamos a ver em um dia um barco comercial levar toneladas de peixe, tirando o sustento deles”. Começaram com uma ideia romântica de querer ver as canoas de volta na água, os pescadores tradicionais utilizando uma ‘forma ancestral’ e viver da pesca como antigamente. Os empreendedores também pensavam em como reaproveitar um pescado que não era tão valorizado. O que acontecia era que o peixe parava em um entreposto e a remuneração para o pescador era muito baixa.

Um dos objetivos do projeto também foi resgatar a pesca do cerco flutuante. Perna conta que nos anos 2000 praticamente não existia nenhum cerco flutuante, como é chamado o tipo de pesca ancestral que chegou no Brasil na década de 1930 trazido pelos japoneses. Considerada mais sustentável, é uma pesca passiva, na qual se aguarda o peixe entrar em um puçá gigante, parecido com uma grande peneira. O pescador visita o cerco três vezes ao dia e faz a despesca, como é chamada quando puxam os peixes para fora da rede, usando canoas tradicionais. A vantagem deste método é que o peixe chega vivo e se acontece de entrar algum que está em defeso, com a pesca proibida, ou tartarugas, eles colocam para fora e ficam apenas com os peixes que podem ser vendidos.

A primeira etapa foi vencer a batalha para regularizar os cercos que estavam desativados pela instituição que faz o zoneamento marinho. Hoje, são 11 cercos certificados na região do Bonete. Não existia mais nenhum quando começaram. O resgate das canoas que são feitas de um tronco só para trabalhar no cerco e ensinar os jovens como fazer a rede voltou na rotina dos pescadores. Com isso, conseguem afastar a pesca comercial da baía. Na década de 1980, os caiçaras faziam três a quatro canoas por ano e foram largando a prática. “É um patrimônio naval que ajudamos a recuperar, as canoas que existiam estavam abandonadas”, conta Perna.

Laboratório

A determinação do trio em alcançar seus objetivos culminou com a criação do Fish Lab, um laboratório em frente a praia da Armação, propositalmente instalado um pouco longe da comunidade para assim preservá-la. Inaugurado no final de 2021, é dedicado exclusivamente à reprodução de técnicas com protocolos disponíveis para conservar pescados e frutos do mar, o que inclui o resgate do que outros povos e civilizações já fizeram, sem receitas autorais. O laboratório trabalha com cinco protocolos: salga; defumação; conservas; charcutaria e fermentação. “Mais de 30 produtos já foram recuperados e reproduzidos em comunidades isoladas, como a bottarga preservada em cera de abelha, o salame de atum com carne de porco e várias conservas”. Foi um longo trabalho que exigiu viagens de estudos, inclusive ao Japão, e parcerias com outras instituições e laboratórios microbiológicos.

“Não tinha como não fazer nada convivendo com a situação dos pescadores praticamente todo fim de semana. Eles conhecem o mar a ponto de saber que tipo de peixe será pescado só pela posição da maré, é emocionante e muito forte do ponto de vista cultural. Isso existe no Brasil inteiro espalhado pela costa”, contou Vilar, enquanto preparava o café na manhã seguinte da visita vestindo seu uniforme – bermudas e chinelos –, que não tira nem quando vai falar do A.Mar em outros países. Com a divulgação, outros estados querem desenvolver projetos similares. O Ceará foi o primeiro interessado e agora a iniciativa chegará também em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, quem sabe no Paraná, há interesse.

Ao lado do laboratório eles instalaram uma fábrica de gelo gratuita, pois um dos problemas com a pesca artesanal é que os pescadores não possuem frigoríficos próximos, nem estrutura para o armazenamento de peixes. Eles sabem que muitas vezes para as grandes redes de supermercados é mais fácil importar do que consumir localmente, o que ajuda o consumidor do interior dos estados dar preferência ao peixe em filé, sem espinhas.

Os empreendedores dizem que o grande esforço do projeto foi dar voz aos pescadores e tratar o peixe como o vinho. “O pescador não tem nome, não tem rosto. Ter o nome dele e o local onde pescou estampado no pacote é um reconhecimento ao trabalho tão difícil que fazem”, afirma Vilar.

Ampliação

Hoje, o A.MAR pode ser definido como um centro de pesquisa e estudo e capacitação, com três núcleos. Um braço educacional com a Escola de Alimentos do Mar, criada com a educadora Rosa Moraes, que promove cursos, sendo três edições por ano, mais a elaboração de livros e documentários. Outro núcleo é a linha de produtos, com fins lucrativos, que inclui ainda as visitas técnicas para conhecer o laboratório, com degustação, e jantares, tendo a renda revertida em parte aos pescadores e para manutenção da estrutura. Com a duração de seis horas, a visita custa R$ 350,00 por pessoa e pode ser agendada pelo perfil do projeto no Instagram ou por telefone. E por último, a criação de uma fundação voltada para a realização de trabalhos sociais, que está sendo estruturada.

Na linha de produtos, os três sócios foram atrás de soluções para dar a chamada autonomia de prateleira, como com os protocolos de defumação, defumando peixes inteiros e em partes. Levar técnicas diferentes, de outros métodos de conservação, virou uma obsessão até que entraram os protocolos, aumentando a guarda por dois anos. “Historicamente, a técnica veio da segunda guerra mundial, mas outras são mais antigas ainda”, disse Vilar. Outro exemplo de aproveitamento é com a conserva de aliche, ao invés de usar a sardinha anchovada, eles usam o farnangaio, que tem baixíssimo valor comercial, e que passando pelo processo de fermentação em tonéis de madeira, recebem rótulos e embalagens especiais – desenvolvido por artistas plásticos. Eles acreditam que com a marca de uma comunidade tradicional os produtos ganham mais valor no mercado.

No grupo dos fermentados, tudo o que normalmente não seria consumido racionalmente, como vísceras, corações, intestinos, com alta concentração de enzimas e de proteína, é aproveitado. Isso é possível com processos de controle do microambiente na manipulação que garante segurança alimentar e microbiológica na fabricação de linguiças, salames e copas, com aproveitamento do sangue de diversos tipos de peixe. Se o peixe é bem manipulado, pode-se aproveitar até o fígado, explicam. A ideia é não se restringir ao filé de peixe ou uma posta, pois são muitas possibilidades.

Também testaram no laboratório a utilização do próprio estômago da garoupa para fazer um embutido. “Existem protocolos do exército russo colocando filé de salmão dentro do estômago de focas e devido a alta acidez conseguiam conservar o peixe nos períodos de guerra. Isso antes de o mundo descobrir os alimentos processados. Então, nós fizemos um teste com a garoupa por 210 dias, que resistiu a qualquer tipo de bactéria patogênica e desenvolvimento de fungos. Deu certo”, comemora Vilar.

Despesca

Uma das metas do projeto é demonstrar para as comunidades tradicionais a importância da despesca correta, já dentro das canoas, com a neutralização dos terminais nervosos que alimentam as células do peixe para ter um pescado de qualidade. O peixe não se debate. É uma técnica chamada Ikejime, que também vem do Japão. “Você acaba pescando menos porque aproveita melhor e não precisa vender um grande volume para garantir renda”. Acreditam que é importante o pescador entender a necessidade de usar gelo e fazer um abate correto do peixe, o que acontece a partir do retorno financeiro para eles. “No Brasil, o pescado é muito barato, então precisam pescar mais e é barato porque o peixe não tem um tratamento adequado”. É preciso trabalhar em cima da anatomia dos pescados, “queremos ensinar o que é um peixe fresco, não é porque é artesanal que necessariamente é um peixe de boa qualidade”.

Naquelas praias da ilha moram robalos, garoupas, e cavalas, mas também sargos, pirajicas e palombetas, entre outros peixes nada comuns e pouco consumidos. O trio acredita no poder da educação para mudar um cenário no qual as pessoas estão acostumadas a dar preferência apenas a espécies conhecidas, como o salmão produzido em cativeiro. “Restaurantes pequenos compram três, quatro toneladas de salmão, que vem do Chile, tem um processo de criação questionável, com impacto ambiental grande, e o pescador daqui não consegue vender o peixe que ele pescou”. A intenção é explorar outras possibilidades para o consumo. Vilar cita o processo da ova de pirarucu, que pode alimentar por meses uma família, como é feito na roça com o porco aproveitando toda carne e a banha do animal.

Resultados

O impacto do A.MAR ainda é intangível, não é possível quantificar em métrica numeral os benefícios, o que deve acontecer nos próximos anos, imaginam, mas é possível avaliar o impacto nas comunidades que já conheceram a iniciativa. O pescador Alex de Jesus festeja as melhorias, “uma mão na roda, como se diz. Devo muito ao projeto, aprendi, continuo aprendendo e tenho mais retorno com o trabalho”.

Inquestionável também é o sabor de um pescado fresco que foi manipulado adequadamente. Quem come um peixe assim, não esquece. Naquela noite na ilha, o mar ofereceu lulas. Elas foram preparadas na brasa sem tempero, eram quase doces, servidas com coentro do mato, e entraram na moqueca que fez quem provou silenciar diante de tanto prazer. Farnangaios fritos se alinharam no fogão à lenha e também foram servidos, com pães, sidra e vinho trazidos na bagagem da turma.

O jantar improvisado pelos chefs que acompanharam a expedição, Pablo Inca, do restaurante Cora, e Willem Vandeven, do restaurante Maní, e com a ajuda dos anfitriões, foi apreciado por todos, mais três jornalistas e as representantes da Agência Síbaris estavam no grupo. Com a luz de velas, reforçada pela lua que espalhava a sombra na água e iluminava a mesa de tábuas meio desalinhadas e nuas, tivemos um banquete, pensei, como reis e rainhas que costumavam se fartar, quando nem sonhavam com cidades grandes barulhentas e a interferência eletrônica que consegue emudecer ambientes.

Dormi protegida pelo dorsel da cama, na companhia das estrelas que apareceram mais tarde e dos barulhos silenciosos da mata. No dia seguinte, participamos da despesca em um cerco próximo impressionados entre a beleza e a força dos peixes e homens puxando a rede para as canoas, depois visitamos outras comunidades e conhecemos o Fish Lab. Lá fomos recebidos por cabeças de peixes gigantes, freezers, barris para conserva, câmaras frias e quentes de fermentação, aquários, salames sendo curados, livros, itens exóticos, molhos, embalagens, entre outros aparatos. Todos os produtos feitos ali saem com as informações sobre origem, data, tipo de pesca e método de preparo. Sorri ao ver a mesa cheia daqueles produtos, resultado do trabalho deles, e poder prová-los.

Agora, os produtos já são comercializados, recentemente, pude comprar em um evento em São Paulo conservas preparadas sem nenhum aditivo, estabilizante, corante ou acidulante, que estão disponíveis durante o ano todo. Tem peixe defumado, bottarga, entre muitos outros produtos e até salame de atum, porco e pistache. Outra novidade são os cursos da Escola Alimentos do Mar. Eles levam a sério o ideal de aprender com o passado para desenhar um futuro melhor.

A jornalista viajou a convite da Agência Síbaris.

Fish Lab
@projetoa.mar
11 99592-8222
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