Eu não perderia, por nada, a oportunidade de conhecer o estudo que resultou no relatório “Os caminhos da comida: o papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar”. O cenário de insegurança alimentar e o acesso a alimentos saudáveis é real. Por isso, divulgar a iniciativa apresentada recentemente no Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), responsável pela elaboração do documento ao lado de outros atores,  virou prioridade. O trabalho deve contribuir para a construção de políticas públicas de alimentação. A apresentação reuniu uma seleta plateia que incluiu autoridades, técnicos, representantes de classe e pessoas interessadas no assunto, entre elas, a chef Manu Buffara.

A ideia de abordar o tema no planejamento urbano foi dos técnicos Pedro Portugal Sorrentino e Elizandra Flávia Araújo de Oliveira, a Elis, ambos do instituto curitibano. Para compensar o meu atraso no dia, voltei à sede com lambrequim polonês, que fica escondida ao final de uma ruazinha que lembra uma vila praiana – uma das duas entradas da instituição, na divisa nebulosa entre Juvevê e Cabral. Fui recebida pelos dois na “sala redonda” (a sede tem vários ambientes), e constatei mais uma vez: a iniciativa não foge à regra da instituição responsável por planos e projetos sustentáveis que tornaram a cidade conhecida internacionalmente e uma referência em inovação urbana.

Sorrentino nem se lembra exatamente como tomou conhecimento de um estudo feito pelo Instituto Escolhas para São Paulo, mas a decisão de tentar fazer algo semelhante em Curitiba e subsidiar o Plano Diretor da cidade, que passará por uma revisão neste ano, veio imediatamente. A instituição paulista virou parceira em um formato diferente do que costumam atuar, pois haveria a participação de pesquisadores daqui. Depois, veio o convencimento interno de que era um assunto de interesse do Ippuc – esse senhor maduro, que está próximo de comemorar seu aniversário de 60 anos, em dezembro de 2025.

Com a aprovação da proposta e formalização da cooperação, os técnicos idealizaram e realizaram a empreitada que contou com a colaboração da Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN) da Prefeitura de Curitiba. Desde o momento do convencimento interno, viabilização da parceria, formação de equipe e execução foram dois anos. “Alguns dias a gente achava que nunca chegaria ao fim. Foi bem trabalhoso, cada base de dados consultada tinha informações que abriram frentes diferentes”, contaram os técnicos, satisfeitos com o resultado alcançado e com a repercussão.

A nossa relação com a comida

Pensei em como “os caminhos da comida” começam em casa. A conversa em torno do assunto ficou bem evidente. Perguntei à Elis, que é nutricionista, como foi atraída para a profissão. Nem pestanejou: falou no quintal comprido; da mãe cuidando da horta; da avó fazendo compotas e geleias, entre outras coisas; e das galinhas ciscando no terreno. Enquanto ela falava, lembrava da minha própria casa, era igualzinha: plantação; bichos soltos; mesa cheia de farinha, a massa sendo sovada, secando ou fermentando; fogão fumegando e comida boa sempre.

Fiz a mesma pergunta ao Sorrentino, que é arquiteto. “Escutava meu pai falar que era preciso valorizar a comida. Olhava para o arroz no meu prato e pensava em quem havia plantado, imaginava a terra, a semente germinando, a colheita e em quem havia preparado o que eu comeria”, isso me marcou. Essa relação que temos com a comida na infância é determinante. Coincidência ou não, caiu no seu colo um estudo de um professor da faculdade sobre os sistemas alimentares e a produção nas cidades. Quando entrou no Ippuc, conheceu a Elis e viu que o interesse de ambos era comum, tema do mestrado dela – políticas urbanas e de agricultura em Curitiba desde a época colonial até hoje. Assim, foi natural pensar em agricultura urbana e a relação com o planejamento, trazendo o tema da academia para uma aplicação prática. Eu chamo isso de sincronicidade, algo marca tua vida, mesmo sem que você saiba: você estuda, está preparado, e, de repente, o milagre acontece, surge uma oportunidade, o que não quer dizer um caminho rápido e simples.

Objetivo

O objetivo do trabalho que elaboraram é servir de subsídio para o enfrentamento de questões atuais e urgentes como a inflação dos alimentos, a insegurança alimentar, a geração de emprego e renda, a integração metropolitana e o enfrentamento da emergência climática. Os desafios vão desde a distribuição de alimentos, com um tráfego de cargas na região que impacta a mobilidade e o sistema viário até a redução da produção de alimentos significativos, como o feijão. O relatório mostra que existe uma queda expressiva no número de estabelecimentos agropecuários da agricultura familiar e o envelhecimento dos produtores.

Além disso, o desperdício de alimentos, presente em todas as etapas da produção e distribuição é outro problema, além de a cultura alimentar contemporânea facilitar o consumo de alimentos ultraprocessados. Sorrentino explica: “Tem desperdício no transporte, na comercialização, no consumo, no ambiente doméstico, do resíduo orgânico que poderia ser aproveitado, o que acaba impactando na insegurança alimentar”. Os pesquisadores tinham o panorama teórico, mas os dados levantados mostram que a dinâmica é mais impactante. “Temos o privilégio de existirem muitos produtores próximos à cidade, só que aos poucos isso está mudando. A cada Censo Demográfico, vemos a diminuição da população rural, e aí entram as políticas públicas”, afirma Elis.

Números

De acordo com os dados do relatório, o Brasil apresenta 70,3% da população em segurança alimentar. Em Curitiba e sua região metropolitana, esses números são de 80,9% e 79,6%, respectivamente, excluindo a sub-região do Litoral. A insegurança alimentar leve, associada à dificuldade de manter uma alimentação de qualidade ou à incerteza sobre o acesso futuro aos alimentos, afeta 15,4% da população curitibana. Casos de insegurança alimentar moderada e grave afetam 3,8% da população aqui, ou seja, mais de 70 mil pessoas. Mesmo assim, Curitiba se destaca por possuir 190 hortas urbanas, sendo 85 escolares, 53 comunitárias e 522 institucionais, que beneficiam cerca de 48 mil pessoas.

De acordo com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), há quatro níveis: segurança alimentar (acesso pleno e regular de alimentos); insegurança alimentar leve (preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro); insegurança alimentar moderada (redução quantitativa no consumo de alimentos) e insegurança alimentar grave (fome).

A pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada pelo Ministério da Saúde em 2023, e publicada no relatório do Ippuc, mostra que somente 25% das pessoas com 18 anos ou mais de idade em Curitiba consomem cinco ou mais porções diárias de frutas ou hortaliças. Além disso, grupos de menor renda domiciliar per capita tendem, percentualmente, a consumir uma quantidade quatro vezes mais de ultraprocessados que os de maior renda e a má alimentação está relacionada ao aumento da obesidade e doenças crônicas, como diabetes e hipertensão.

Outro tema importante abordado no documento é a questão dos resíduos sólidos (orgânico, seco e rejeitos). A matéria orgânica, por exemplo, gera um custo estimado em R$38,7 milhões anuais para destinação em aterros sanitários. “Esse valor poderia ser reduzido se redirecionado a outros serviços, como, por exemplo, programas de compostagem”, explicam os pesquisadores. Parte dos resíduos orgânicos deve-se ao desperdício de alimentos: quase ⅕ de todo alimento que é produzido no mundo é desperdiçado. Redirecionar esses resíduos para programas de compostagem poderia reduzir esse custo.

Dez itens a serem seguidos

Os pesquisadores nem imaginavam a quantidade de informações que teriam em mãos, nem a repercussão como a que tiveram, “ficamos muito satisfeitos”, diz Elis. A presença de autoridades, prefeito inclusive, alto escalão de instituições, como do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), apoiando e reconhecendo o trabalho é um alento.

Na conclusão, apresentaram dez sugestões para os gestores públicos dos municípios da Região Metropolitana de Curitiba, do Litoral e da capital poderem avaliar as possíveis ações que cabem no sistema alimentar local considerando as desigualdades territoriais. O relatório indica que essas cidades têm potencial significativo para avançar na transição para sistemas alimentares mais sustentáveis e saudáveis. Entre as propostas estão: criar incentivos à prática agrícola nos zoneamentos urbanos; incentivar a agricultura urbana; incentivar estabelecimentos comerciais dedicados à venda de alimentos saudáveis; criar “zonas de promoção da saúde e qualidade de vida” em áreas estratégicas; melhorar a infraestrutura de transporte e distribuição de alimentos.

Plano Diretor

O Plano Diretor é obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes e deve ser revisado a cada 10 anos, por meio de audiências públicas e consulta popular, é uma maneira de integrar o sistema alimentar ao planejamento urbano. Trata-se de uma ferramenta que orienta o desenvolvimento da cidade, que define como o espaço urbano deve crescer e se organizar, considerando a habitação, o transporte, o meio ambiente, a infraestrutura e o uso do solo, garantindo que o crescimento aconteça de forma ordenada para melhorar a qualidade de vida da população. A revisão do Plano Diretor de Curitiba, que começou em abril, vai até 2026 e inclui a participação da equipe do Ippuc. Depois, a minuta do projeto de lei é submetida à Câmara de Vereadores para análise e aprovação.

Desafios

Terminado o trabalho, a equipe definiu desafios para os próximos 10 anos, sempre pensando em um horizonte a longo prazo. “Cuidar do sistema alimentar e garantir uma alimentação adequada da população é uma questão prioritária para os próximos anos, especialmente considerando as mudanças climáticas”, afirma Elis. No capítulo final do estudo, são apresentadas recomendações para a política urbana de Curitiba e da Região Metropolitana e especificamente contemplando o Plano Diretor. Entre elas, destaca-se o uso de instrumentos urbanísticos para cumprir as funções sociais da propriedade, moradia e da produção alimentar. “Por que alguns terrenos que estão ociosos hoje não podem ser pensados também para a produção de alimentos saudáveis?”, questiona Sorrentino. Essa questão abre a reflexão sobre o potencial de aproveitar áreas urbanas abandonadas ou subutilizadas.

A proposta também apresenta um levantamento de áreas degradadas em regiões de produção permanente (APP), próximas a rios, com potencial de reflorestamento produtivo dessas áreas introduzindo espécies frutíferas, árvores nativas e sistemas agroflorestais, garantindo a proteção da mata ciliar, enquanto promove a produção de alimentos. “Essa estratégia não é apenas para aumentar a produção de alimentos, mas também para promover o acesso à natureza e ao lazer”, reforçam. A equipe acredita que há muitos caminhos possíveis a partir dessa icinicativa e o futuro para a soberania alimentar da região é promissor, especialmente se essas sugestões forem incorporadas ao Plano Diretor. Entre os próximos passos, está a apresentação do trabalho aos municípios da Região Metropolitana e a ampliação do diálogo com pesquisadores de universidades e outras instituições, com o objetivo de aprofundar a análise de dados, ampliar a rede de colaboradores e produzir artigos científicos.

Um conceito que vem ganhando destaque é o da “conexão alimentar”, uma tentativa de articular os diferentes eixos relacionados à produção, suporte, distribuição e consumo de alimentos, refletindo a multiplicidade de caminhos que podem surgir a partir do estudo. Além disso, os pesquisadores querem divulgar essas informações para ajudar na formulação de políticas públicas, apoiando ações do Ippuc e de outras secretarias municipais e estaduais. Eles também pensam em outros projetos para aproximar produtores e consumidores, como acontece em São Paulo, e afirmam que estão abertos para trabalhar em outras pesquisas, ou demandas que podem ser sugeridas pela comunidade.

Durante o processo de revisão do Plano Diretor, planejam realizar oficinas comunitárias para envolver a população, produtores, feirantes, jornalistas, organizações e instituições vinculadas ao sistema alimentar da região, incluindo o Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR), que já tem mapeado várias cadeias produtivas. “Queremos manter um canal aberto para ouvir quem vive o dia a dia do sistema alimentar na região e contribuir com subsídios para a construção de um planejamento urbano mais inclusivo e condizente com as necessidades desses grupos”, explica Sorrentino.

Prato Cheio

Refletindo sobre tudo isso, percebi que não poderia perder a oportunidade de conhecer e divulgar o trabalho dos pesquisadores da Coordenação de Monitoramento e Pesquisas, do Ippuc, e de parabenizá-los. Ainda bem que aceitei o convite. ‘Consumo consciente demanda acesso a informações’ – não anotei quem disse, mas sei o valor dessa afirmação. Agora, precisamos acompanhar os desdobramentos da proposta.

E se você chegou até aqui e se sentiu impactada como eu, recomendo também ouvir dois episódios do podcast Prato Cheio sobre a gentrificação alimentar. Vai entender como o conceito, aplicado ao contexto urbano, ajuda a explicar os movimentos do universo da alimentação. A equipe do podcast busca compreender como inovação, gourmetização e apropriação resultam na exclusão de grupos mais pobres — pessoas que, de fato, valorizam alimentos ou culturas tradicionais.

No programa, vai ficar sabendo que a maior responsável pela gentrificação alimentar é a indústria de ultraprocessados, que tem como estratégia desvalorizar os alimentos frescos e saudáveis. O conceito (gentrificação) surgiu na Inglaterra aplicado ao urbanismo referindo-se ao processo de exclusão e consequente expulsão de moradores de menor poder aquisitivo a partir de uma valorização mercadológica de determinadas áreas que são abandonadas pelo estado.

Os jornalistas do canal O Joio e O Trigo, que produz o podcast, tratam do conceito vinculado à comida, de “quando a comida exclui”. Portanto, mais uma prova de que ampliar a produção de alimentos saudáveis e transformá-la em política pública não é uma questão trivial. Finalizo com uma sugestão: faça (como eu) a matrícula no curso “Políticas Públicas de Alimentação no Brasil: construção, desconstrução e revolução”, uma iniciativa de formação do Joio que visa ampliar o nosso conhecimento sobre o assunto.

QUADRO – Outras iniciativas

Gastromotiva

A Gastromotiva, uma organização que promove a transformação social, inclusão produtiva e o desenvolvimento comunitário sustentável por meio da gastronomia social, criada pelo chef curitibano David Hertz, tem iniciativas replicadas em vários estados e até no México. Ele lançou o conceito de gastronomia social, em 2004. A ONG atua por meio de uma gastronomia inclusiva que combate à fome e o desperdício de alimentos. O foco está na preservação do meio ambiente, valorização da cultura regional, da diversidade dos alimentos e promoção da inclusão produtiva. Em 2016, a Gastromotiva chegou a Curitiba, as formações aconteceram na Universidade Positivo e foram interrompidas durante a pandemia, com o trabalho sendo canalizado para as cozinhas solidárias, foram 20 cozinhas apoiadas pela ONG em Curitiba. De acordo com o relatório State of Food Security and Nutrition in the World (SOFI – Situação da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo), de 2023, publicado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO),existem 2.3 bilhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no mundo, no Brasil são mais de 20 milhões de pessoas que passaram por insegurança alimentar grave.

Quebrada Alimentada

Outras iniciativas evidenciam o problema de insegurança alimentar. A doutora em História Social Adriana Salay é coautora do livro “Fome e assistência alimentar na pandemia”, lançado em 2022 e estudou a fome antes de o assunto virar uma questão prioritária durante a pandemia. Com a diminuição de políticas públicas criou o projeto social Quebrada Alimentada, em parceria com o marido, o cozinheiro Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó. “Quebrada” é a periferia da capital paulista, no caso a Vila Medeiros, onde o casal vive e agora tem uma cozinha-escola comunitária para preparar refeições e dar formação profissional.

Pesquisa de mestrado

Estudos como o do Ippuc e outros evidenciam a fragilidade econômica e social de pessoas de baixa renda, que não conseguem acessar uma alimentação saudável e a necessidade de políticas públicas. Uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná, da arquiteta Marina Sutile de Lima, revelou com detalhes o problema, que inclui insegurança de se caminhar em determinadas regiões, a relação da escolha dos alimentos pela disponibilidade nas proximidades dos domicílios, até a falta de tempo para preparo do alimento e a relação com a piora dos índices de saúde porque a alimentação de uma parte da população não atende as demandas nutricionais. A matéria sobre a pesquisa da arquiteta foi publicada no Jornal Plural. O módulo Segurança Alimentar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua divulgado há um ano aponta que dos 4,33 milhões de domicílios particulares permanentes no Paraná, 17,9% (774 mil) não tinham acesso permanente à alimentação adequada.