Até um dia antes do jantar, que reuniu alguns dos mais importantes chefs da América do Sul no restaurante D.O.M., em São Paulo, eu não sabia se iria. Com a liberação médica e passagens embarquei. Afinal, o convite era irrecusável. Não é todo o dia que é possível andar pelo Brasil, Peru e Argentina ao mesmo tempo e pelas mãos dos melhores chefs da América Latina. Estive com Pablo Rivero, do restaurante Don Julio, de Buenos Aires, Pía León e Virgilio Martínez, dos restaurantes Kjolle e Central, de Lima, respectivamente, e com Alex Atala, o anfitrião da noite em uma casa ícone da gastronomia nacional. Em comum, além de figurarem nas listas mais prestigiosas do mundo, o quarteto carrega o orgulho de seus países de origem, a valorização dos ingredientes locais e a riqueza da cultura gastronômica.

A ideia do jantar com alguns dos melhores chefs da América Latina partiu de Pablo e Virgílio, que há algum tempo nutriam o desejo de cozinhar ao lado de Atala. Assim que os efeitos da pandemia deram sinais de arrefecimento, o que estava limitado ao campo imaginário começou a se concretizar. À dupla, afeita ao universo da cozinha de alto padrão, juntou-se a talentosa Pía Léon, vencedora do The World´s Best Female Chef Awards de 2021. Com a adesão instantânea de Atala, que receberia o trio, entraram em cena a dupla de articuladoras da gastronomia Joana Munné, da Agência Síbaris, e Rosa Moraes, embaixadora de turismo e hospitalidade do Grupo Ânima, que inclui o curso de gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi. Aliás, os chefs estrelados participaram de uma aula na instituição, conto em uma próxima coluna.

Processos

Antes de começar a traduzir a experiência em palavras, lembro que escrever é “duro como quebrar rochas”. Imagine falar do que comi em um jantar para quem não comeu.  Assim, recorro às imagens, tenho fotos que quase são o que provei, e ao texto da Clarice Lispector. “Palavras, elas têm que fazer sentido quase que só corpóreo”. Um exercício.

Penso que a criação de um prato seja um pouco como as minhas anotações. Coloco uma ideia, corto, reescrevo, busco uma informação relevante, brigo comigo mesmo arrependida de porquê não perguntei algo que agora acho fundamental. Depois tento ler com os olhos do leitor. Os cozinheiros confirmam, o processo criativo é imprevisível.

Chef Alex Atala e o chef e sommelier Pablo Rivero. | LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Banquete com os melhores chefs da América Latina

Durante as orientações sobre o serviço para a equipe do salão momentos antes do jantar – nunca havia presenciado como é a apresentação dos pratos, a concentração é total – Alex Atala contou que a sobremesa de figo que seria servida, que já entra no novo cardápio da casa, levou quase um ano de testes para chegar perfeita à nossa mesa. O gosto é de figo verde, que não amadurece, um clássico doce do cerrado, e é um figo verde, mas a aparência é do roxo. Mistério a ser desvendado para quem provar.

Sobremesa do chef Alex Atala: figo roxo com sabor da fruta verde. | LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Mais sobremesas

De carona na deixa de Atala, inverto a ordem e continuo com as sobremesas. A última delas foi do casal Pía Leon e Virgilio Martínez, uma tradução resumida do trabalho da dupla. Cacau em todas as suas versões. O doce trazia as diferentes texturas. Primeiro uma esponja de chocolate e pedaços de cacau. Depois, mais quatro acompanhamentos exibindo: polpa; nibs; casca crocante; parte fermentada; manteiga de cacau; infusão. Sem ordem para seguir na degustação e com aproveitamento total da fruta. Complexo. “Quase que cada prato é um sistema que representa a natureza”, explicou Martínez.


Dupla Virgílio Martínez e Pía Léon apresentou o cacau em várias versões. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Já a sobremesa trazida do restaurante Don Julio, também potente, esbanjou discrição. Uma única porção generosa de sorvete que deixei derreter na boca lentamente. Simplesmente não pensava em terminá-la. Seria escalada na última refeição do meu adeus final na terra, com certeza. Preparada na cozinha brasileira com o doce de leite de ovelha importado de Neuquén, Patagônia, trazido na mala. Sabor e qualidade vindos da gordura especial do leite.

Sorvete de doce de leite: mais argentino, impossível. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Pratos principais

Se eu falasse em menu equilibrado resumiria a noite. É pouco. Você vai entender. Em um jantar assim o anfitrião deixa que os chefs convidados definam seus pratos para depois completar o menu. “Conseguimos formatar rápido, depois de eles decidirem o que fariam. Acho que a nossa maior dificuldade foi adaptar a cozinha, como tirar um fogão e colocar a parilla, pra que eles se sentissem bem pra trabalhar,” me explica o chef-executivo do D.O.M. Rubens Salfer, que comandou o briefing para a equipe de salão.

“Vieiras com textura de mar” – Central

Vieiras com textura de mar, prato do restaurante peruano Central. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

O primeiro prato do restaurante Central comemos de colheradas. As vieiras estavam por debaixo, mais um creme de vieira no topo, invadiram o salão com seu perfume. Virgílio – porta-voz do casal – falou do prato para quem iria servi-lo. Terminou com suas mãos no ar tentando mostrar, como faz um maestro para a orquestra, que seria arrebatador. Foi. Coral e pepino roxo porque banhado com beterraba davam o toque crocante quase sempre necessário em um prato, ouriço-do-mar e uma alga chamada iüiü potencializava tudo.

Espuma de cogumelo e tucupi – D.O.M.

Versão contemporânea do consummé, espuma de cogumelos e tucupi do chef Alex Atala. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Geovani Carneiro, mais Rubens Salfer, todos os braços do chef Alex Atala, apresentou o primeiro prato do D.O.M.: a versão contemporânea do consummé servido pela primeira vez na casa há 17 anos. A nova apresentação foi transformada em espuma compacta, textura entre mousse e gelatina, ganhou cogumelos crus salteados, flores, brotos e tucupi que recebi como um agrado. Fácil gostar e querer repetir.

Chorizo com tomates – Don Julio

Engana-se quem pensar que o seguinte prato, “chorizo com tomates”, era apenas um simples embutido. A linguiça de carne e de gordura de porco foi enchida com tripa natural e preparada no restaurante D.O.M., com tomate confitado, desidratado no forno e levou orégano fresco. Para acompanhar um tomate da variedade ananás ou abacaxi, com vinagrete de ervas em cima, orgânico, de polinização aberta – um trabalho que eles desenvolvem junto aos pequenos produtores da Argentina, com sementes ancestrais – , explicou Atala. O resgate é tão importante que o restaurante Don Julio já realizou duas festas do tomate para comemorar as colheitas e também vender o produto. Mas, o servido no jantar, veio do interior de São Paulo. O pão levou gordura de novilho ao lado de uma salsa criolla, um vinagrete, parecido com a que fazemos aqui, com a diferença que eles usam mais pimentão.

O tomate tamanho gigante roubou o protagonismo do chorizo e chamou a atenção pelo tamanho e sabor. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Pirarucu salgado, pil pil e couve – D.O.M.

Mais um prato sob a responsabilidade do chef Alex Atala. Desta vez a inspiração vem de um clássico de terras espanholas com a diferença de no seu preparo os ingredientes serem os brasileiros amazônicos. O pirarucu foi salgado e dessalgado como bacalhau e cozido no vácuo à baixa temperatura. A tapenade de azeitonas era de açaí. O pilpil, o molho que é preparado com a gelatina do próprio peixe emulsionado com azeite, ficou mais encorpado do que o tradicional, quase uma maionese. Couve selada na frigideira recebeu todos por cima. Uma brincadeira séria de gente de talento, que sabe o que faz.


Inspiração espanhola e ingredientes brasileiros se combinam em prato do chef Alex Atala. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Ojo de bife de novilho argentino com aligot – Don Julio

Ojo de bife de novilho argentino, cortes maturados por 21 dias, carne conhecida também como ribeye, porque tem aquele ossinho no meio da peça, saiu da parilla em um único ponto, o correto, igual para todos, fez dupla certeira com aligot. O filho mimado do chef Atala vem da culinária francesa e faz parte do acervo do D.O.M.. O prato seduz não só pela perfeição e gosto, hipnotiza com o balé de puxa-puxa da textura elástica executado à mesa. Para aqueles que não recusam carne, seguiu ainda um pedaço de entranha, o diafragma do boi, “para se ver a diferença entre os cortes”, explicou Guido Tassi, um dos chefs do Don Julio e do El Preferido, outro restaurante do grupo, ao lado de Martin Lukesch, que vieram da Argentina para cozinhar. A carne foi servida com um chimichurri. A típica vinagrete argentina preparada com ervas frescas e não secas como usualmente. “Atenção à temperatura da carne no segundo serviço, o da entranha”, lembrou Atala, rigoroso até nos detalhes. O chef sabe porquê, o serviço pode comprometer uma refeição, ao ponto de se perder um cliente. Não teria final mais feliz que esse.

O ojo de bife no ponto perfeito da parrilla faz dupla com o aligot. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Entradas

“Snack de algas com marisco, mais algas, caldo morno” – Central

Volto ao início do jantar. Falo das entradas, e levo um susto quando vejo o “snack de algas com marisco, mais algas, caldo morno”. Acompanhava a relação dos itens utilizados na execução. O caldo morno levou as glórias do bocado. Inacreditáveis 16 ingredientes. Um pouco antes do jantar, Virgilio ajeitava o prato para o fotógrafo ter o melhor ângulo. – Como assim, 16 ingredientes? Perguntei ao chef. “Junta-se todos, cozinha, passa numa centrífuga, faz uma redução e pronto. Muito simples”. Ostra, lagostim, almeja, percebe, polvo, lula, lagosta, navaja, mexilhão, entre outros itens viajando por esse mar sem fim, direto do restaurante Central, de Lima, do Peru, na minha frente. A entrada levou espirulina, uma microalga muito nutritiva, que deu o tom azulado ao bocado. Mais algas, mais crocância. Perfeito.

Snack de Algas com caldo morno. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

“Saladinha de mamão papaya, manga e formiga” – D.O.M.

A segunda entrada da noite era do restaurante anfitrião. Chamar de saladinha a entrada coroada com a formiga saúva – um carimbo e uma reverência do restaurante aos indígenas – foi provocação do chef do D.O.M.. Nam pla, o molho de peixe, óleo de coentro e gelatina de limão completavam o prato lindíssimo, leve, fácil de comer, daqueles queremos repetir sem pensar em nada, apenas entregando-se ao prazer. Atala explicou que era um prato servido por volta do ano 2000. Revisitado, ganhou ares modernos.

Saladinha de mamão papaya, manga e formiga, em referência aos indígenas. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

“Cecina de picanha, libretos e azeite de oliva da Patagônia” – Don Julio

Estava indo tudo muito bem e daí entrou a cecina. Ficou melhor. Se antes crescíamos em complexidade, um respiro e voltávamos à zona de conforto. Tenho gostado disso. A cecina é uma carne salgada e maturada, diferente da nossa carne seca. A que foi servida passou pelo processo durante três meses, temperada com raspas de limão e azeite especial da Patagônia. Acompanhou um libreto perfeito – o folhado “mil folhas” delicado apesar de usar gordura de boi no lugar da manteiga, apenas farinha e gordura. É um clássico da panificação portenha, todos deveriam ter o direito de provar um dia. Atala deu mais detalhes do preparo e lembrou que Don Julio é uma das melhores churrascarias da Argentina, que também tem um trabalho de pesquisa e desenvolvimento de receitas, assim chegaram a troca da manteiga pela gordura do boi.

Os libretos que acompanham a cecina são folheados que recebem esse nome por parecerem páginas de livros. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Sobre os vinhos do jantar

Pablo Rivero que é sommelier e restauranter dividiu a responsabilidade da escolha dos vinhos da noite com a sommelier Gabriela Monteleone. Ela escolheu os vinhos brasileiros para os pratos do D.O.M.. Ele, os vinhos argentinos: Moët & Chandon Brut Impérial, Liverá Malvasia 2020/Escala Humana Wines/El Peral Tupungato Mendoza/Argentina, Abrasileirar 2021/Vinha Unna Bento Gonçalves/RS/Brasil , Rutini Traminer 2000/Bodega Rutini/Luján de Cuyo Mendoza/Argentina, Fósil 2017/Bodega Zuccardi/Vale de Uco Mendoza/Argentina, Blend 2021/Vinhas do Tempo Monte Belo do Sul/RS/Brasil, Torrontés de Velo 2017/Bodega Carasur/Valle de Calingasta San Juan/Argentina, Nature Chardonnay 2021/Dom Dyonisius Caxias do Sul/RS/Brasil, Aberdeen Angus Cabernet Sauvignon 1977/Bodegas Goyenechea/San Rafael Mendoza/Argentina, Terrazas Single Vineyard Petit Manseng 2018 Mendoza/Argentina.

A cozinha do D.O.M. foi palco do show protagonizado por Atala, Martínez, Rivero e León. Foto: Leandro Martins| LEANDRO MARTINS/LMfotografia

Serviço

Restaurante D.O.M. (3º lugar na lista Latin America’s 50 Best Restaurants)
Onde: Rua Barão da Capanema, 549 – São Paulo
Mais informações: (11) 3088-0761 ou [email protected]

Restaurante Don Julio Parrilla (10º lugar Latin America’s 50 Best Restaurants)
Onde: Guatemala, 4699 Palermo – Buenos Aires – Argentina
Mais informações: 11 53 11-5668 e @donjulioparrilla e donjulio.meitre.com

Restaurante Central (1º lugar Latin America’s 50 Best Restaurants)
Onde: Av. Pedro de Osma, 301 Barranco – Lima – Peru
Mais informações: 51 1 242-8515, @centralrest e [email protected]