Eu não entendi porque com tanto trabalho para terminar eu havia aceitado entrevistar, no meio de uma tarde, a argentina especialista em chás que estaria em Curitiba para ministrar dois cursos, um de Sommelier de Chá e outro de Tea Blender.
A resposta veio entre lágrimas e goles de chá, havia recebido um presente. Desconfiei. “O chá é um caminho sem retorno”, segredou-me a especialista Victoria Bisogno em meio a uma cerimônia com a bebida ancestral servida ao estilo chinês e ainda na presença da pequena estátua de Lu Yu (733-804), uma espécie de santo padroeiro. Acatei a provocação. Parecia mais uma benção. Uns dias depois, desviava ainda mais a minha rota embarcando no curso de Tea Blender.
“Um encontro, uma oportunidade”. As palavras do imperador chinês Shennong, a primeira pessoa a usar a Camellia Sinesis, ecoava. A lenda diz que uma folha se desprendeu da árvore, por volta do ano 2.750 a.C., indo direto para a sua caneca com água quente transformando ele e o mundo. Já o Japão acredita que o costume de beber chá tenha sido levado da Índia por Bodhidharma, o fundador do budismo zen.
O chá
Apesar de a legislação no Brasil permitir que infusões levem o nome de chá, no mundo todo chá é apenas o preparo com a planta originária da China. “O chá é uma infusão, mas nem todas as infusões são chá”, explica Victoria Bisogno.
As mais consumidas são a Camellia Sinesis Sinesis, da China, e a Camellia Sinesis Assamica, da Índia. E são sete as variedades que usamos: branca, verde, amarela ou dourada, pouchong (levemente oxidadas), oolong ou chá azul, preto ou vermelho e dark tea. A planta é mantida em arbusto para facilitar a coleta de suas folhas.
“Relaxa o corpo e ajuda na concentração”, escutei. Não precisei de nenhum grande esforço para entender. Constatei. Era o que eu estava precisando.
Victoria Bisogno, a inspiradora
Nanni, a avó francesa, foi a responsável por envolver a pequena Victoria Bisogno ainda criança no mundo do chá. As borboletas, habitantes do jardim da casa onde era preparada a bebida, desta vez com o ritual inglês, foram carregando-a para um mundo de infinitas possibilidades e prazeres. Ela nem imaginava.
Formou-se engenheira e saiu a trabalhar. Morou fora. No caminho, oferecendo uma xícara de chá para um colega, não sabia que estava em frente ao seu futuro marido e principal incentivador. Depois do altar largou tudo. As borboletas estavam por ali, puxaram Victoria para outro desafio impondo desta vez cálculos destinados a determinar infusões.
Assim deu o primeiro passo profissional, criou o Charming Blend, um pequeno laboratório de transformação de folhas secas na mais complexa bebida.
Dois anos se passaram, Victoria entendeu que precisava testar seus conhecimentos para além das xícaras. Vieram os livros, já são três, Manual do Sommelier de Chá, A Alquimia do Chá e La Cata del Té (ainda sem tradução para o português), e o El Club del Té, muito mais do que uma escola.
Victoria Bisogno é presidente do El Club del Té, consultora e elabora blends para várias marcas, além da sua, e segue inspirando seguidores.
El Club del Té
“A cultura do chá, da terra ao espírito” é a filosofia do El Club del Té. O termo “cultura” vem do latim cultus, deriva de colere, que significa “cultivar a terra”. Mais aprendizado. Com o tempo, “… o conceito da prática de cultivar a terra foi ampliado com uma conotação metafórica para à prática do cultivo do espírito e das faculdades intelectuais”. Aprendi no Manual do Sommelier de Chá.
“Talvez poucas coisas no mundo possam nos aproximar tão bem do conceito de cultura como o chá, já que ambos nascem do cultivo da terra e culminam no cultivo do espírito”, escreveu a especialista.
“Estudava sozinha e sentia dificuldade em conseguir chás especiais e livros sobre o assunto. Por isso, O Clube do Chá foi criado. Fomos pioneiros. Começamos desenhando a escola há 10 anos com muito carinho”, conta Victoria, que também desenvolveu uma metodologia de análise sensorial.
A escola foi criada em Buenos Aires, onde Victoria nasceu e mora. Hoje, tem um grupo de especialistas formados que integram o time de profissionais em várias cidades, na Argentina, na Espanha, no Chile e no Brasil. As aulas, também on-line, podem ser ministradas em espanhol, inglês, italiano ou português.
Tea Blender
Durante os seis dias do curso de Tea Blender descobri como identificar as variedades, aprendi a fazer análise sensorial e a saber mais sobre o protocolo do chá.
Animada em tirar um calo na minha biografia, uma certa dificuldade com identificação de aromas, fiquei perplexa. Parecia mais fácil do que subir em árvore.
Quando abri a porta da sala onde Victoria recebia seus alunos cercada por potes coloridos e embalagens de vários tamanhos, em meio a apetrechos saídos de um conto de fadas, inspirei fundo e apenas deixei que os cheiros me conquistassem. Deu certo. Ando sentindo aromas como nunca.
Tea Blending é uma forma de comunicação. Antes de sair feito alquimista ensaiando misturas é preciso entender o que se quer passar com a bebida que será criada. É preciso um propósito e harmonia. “Técnica e inspiração”, completa Victoria. E também “coração, coragem e imaginação”, desafiou já na primeira aula. Ufa.
No último dia do curso, mais lágrimas na hora de falar porque havíamos misturado determinado chá com algumas essências, especiarias, flores, ervas ou frutas em um blend personalizado para uma colega. Era um presente para aquele momento que ela passava e havia segredado em uma vivência. Fazer um blendé muito mais sério e envolvente do que pensei. Não é fácil “blendear”.
Sommelier de chá
Engana-se quem pensa que a função de sommelier é restrito ao mundo dos vinhos. A palavra tem a origem na Idade Média quando existiam diversos tipos, de pão até o sommelier eclesiástico.
E lá vou eu mais uma vez. Continuo no caminho do chá. Preparo-me agora para o curso on-line de “sommelier”. Sigo o instinto e escuto as orientações: pontualidade, compromisso com a palavra, cuidado com a água. Não é apenas isso, claro.
O sommelier de chá, aprendo, pode assessorar clientes na hora da escolha, promover eventos especiais, realizar análises sensoriais e degustações, por exemplo. Tem muito mais. São novas possibilidades de negócios, até por isso, Curitiba foi escolhida. Temos aqui a maior quantidade de lojas e interessados no tema.
Desafio
Desconfio também que fui seduzida porque pela enésima vez escutei sobre a necessidade de estarmos no “aqui e agora”. A consciência plena, vivendo o presente e deixando o passado e o futuro no lugar deles, um feito de recordações e outro de expectativas. Se o chá ajuda é lição para a vida. Tive certeza.
O imperador chinês, chamado de o “divino agricultor”, também deve ter contribuído para o passo que dou agora, que não imagino onde vai me levar. Um mistério, como o que ronda os efeitos do chá e da sua origem. Compartilho aqui o que tenho aprendido, quem sabe desperte em você o interesse. Mas olha só, é mágico, nasce como o amor e não tem volta, Victoria Bisogno avisou.